sábado, março 01, 2008

António

O calor e a ansiedade encharcavam a face de António. Os fios que tombavam da sua testa aliavam-se ao cansaço que lhe pesava as pestanas. O suor escorregava, em gotas, pela cana do nariz, para se acamar nas covas do seu lábio superior. Acumulava-se a água, como um bigode, por cima da boca até ser sacudida por um safanão violento vindo do volante. Outros fios escorriam-lhe nas costas provocando arrepios embaraçosos que o deslocavam no banco. Habituara-se ao suor desde que começara a tomar peso, ainda antes de partir para África, mas, aquela viagem apressada, estava a transformá-lo num pano encharcado. Uma mosca enamora-se do seu ouvido esquerdo em tangentes sonoras incómodas que procurava interromper com o esgar do pescoço na direcção da janela. As mãos melosas tentavam alcançar a alavanca para abrir o vidro, permitindo expulsar a mosca e repor alguma justiça na sua temperatura corporal.
Há mais de cem quilómetros que não falava, os pensamentos ocupavam-lhe a mente, não deixando espaço para o discurso. Ao seu lado, Júlio não se atrevia a quebrar o silêncio. Noutras circunstâncias talvez o fizesse mas, desta vez, limitava-se a refrescar-se com água e a desejar que a noite anterior nunca tivesse acontecido. Preparava, há algum tempo, uma interjeição que resolvesse aquele desconforto que se adensava mas, desistia sempre no último momento. Descrevia gestos tensos, ora arrastando as mãos sujas pelas coxas, ora coçando violentamente as patilhas até que se enchessem os ombros de caspa fina. Júlio nunca fora um tipo violento, nem mesmo com os pretos em África, a quem raramente levantava a mão, mas o álcool e uma zaragata foram suficientes para o levar à vertigem que o condenou.
Aproximava-se a fronteira, forçando a paragem para que Júlio se escondesse na bagageira do Volvo. Escondeu-se por baixo de umas mantas e de uns sacos de viagem que serviriam para o disfarce, pediu mais uma vez desculpa como um cão arrependido e envolveu-se quieto. António tornou ao volante, apesar de ter ponderado abandonar o carro naquele momento. Recordou, nesta altura, a fronteira da Namíbia, que passou vezes sem conta em direcção à Africa do Sul, o calor e a poeira davam particular credibilidade a esta recordação.
Chegado à fronteira, António parqueou o carro e meteu conversa com o fiscal que se preparava para vistoriar o carro. Abriu a bagageira, onde se distinguia um pé de Júlio enroscado por baixo dos sacos. Um choque de pânico percorreu António, que se viu perdido naquele momento. Puxou as calças para cima, num gesto nervoso que muitas vezes repetia, e retomou um ar calmo. Julgando ser o pé de um morto e temendo o pior também para si, o fiscal disse a António que seguisse.
Seguiram para Tui onde ficou Júlio, em lágrimas, com algum dinheiro para a fuga. Uma semana mais tarde, ainda com dinheiro no bolso, voltou a Portugal e entregou-se à guarda.
Desenho - Andreia Dias

5 comentários:

redonda disse...

Já vim aqui antes, mas penso que não escrevi nada. Gostei deste teu texto, como gostei de outros que já li e tenho gostado muito das transcrições que tens feito do Torga.

Pedro Brandão disse...

Obrigado Redonda,
Estive no teu blog, gosto muito da tua torrente de escrita, vi também que estás a contribuir para tirar o hermes da clandestinidade...

A. Roma disse...

Seriam os remorsos? Ou o medo de ser apanhado paralizou o Júlio?

Achei o texto sugestivo e é com curiosidade que vou passar por aqui mais vezes.

Pedro Brandão disse...

Olá A. Roma,

Não sei responder, penso que Júlio nunca quis verdadeiramente fugir... mas só se apercebeu disso depois da fuga consumada.

Volta sempre, tentei escrever mais e com mais assiduidade.

Pedro Brandão disse...
Este comentário foi removido pelo autor.