sábado, julho 26, 2008

Il doppio legame

Foi desaparecendo tudo a pouco e pouco, confessou-me Lúcia, mais calma naquela tarde. Senti-o esfumar-se diante de mim como uma névoa se esfuma.
Lúcia coçava o braço esquerdo e fazia ranger os dentes enquanto lhe transmitia palavras de conforto que tinha dificuldade em articular. Inquietei-me também, solidário, e oscilei na cadeira de uma forma calculada. Os seu olhar parecia perder-se quando interrompia o discurso, para retomar o meu quando voltava a contar-me o que sentia.
Recordo-me de quando começaram a rarear-lhe as palavras, disse-me, e de como perdeu força a sua voz, que passou a apenas murmurar na maior parte das ocasiões. Desapareceram também os olhares, cada dia mais murchos, pesados e vazios. E os gestos, que se fizeram meros acenos
Desde essa altura, sombrio, passava os dias a escrever. Eram textos que nunca me mostrou, ao contrário do que fazia tipicamente com as suas publicações, fossem literárias ou científicas. Estes textos pareciam vazar-lhe a alma, sorver-lhe os sentidos como nunca havia sucedido anteriormente.
Os mesmos textos que o salvaram da loucura, mais do que o exército russo, consumiam-lhe, em vingança, agora tudo. Penso que nunca o compreendi totalmente. A maior parte dos que o podiam compreender tinham morrido há muito, num local onde também ele estava destinado a morrer.
O sentimento de culpa irracional por ter sobrevivido sempre o perseguiu. Não lhe davam descanso, as cumplicidades e os acasos felizes desta sobrevivência e pesavam-lhe o rosto e o passo. Nos últimos dias, estas recordações injustas pareciam encurralá-lo de medo.
Encontrei-o caído nas escadas, dizem que se matou, rezo para que não tenha sido assim, seria a pior das coisas.

Trecho da minha entrevista (que nunca aconteceu) a Lúcia Levi.