domingo, agosto 24, 2008

Cafeína

Uma visita ao blog de um amigo recordou-me este texto que serve de prefácio ao romance A Arma dos Juízes de Clara Pinto Correia. O texto é magnífico e é por isso que o reproduzo abaixo na totalidade. A cada releitura que faço invade-me uma vontade imensa de tomar um bom café na baixa do Porto.

"Seja numa bica, num chá, ou numa bebida gelada, mesmo nas bebidas aparentemente já tão distanciadas do conceito original como a Coca-Cola, a cafeína move-se com facilidade a partir do estômago e dos intestinos para o fluxo sanguíneo, e daí segue para os órgãos, e em pouco tempo já se instalou em praticamente todas as células do organismo. É por isso que este alcalóide psicoactivo é um estimulante tão perfeito. A maioria das substâncias não conseguem atravessar a barreira sangue-cérebro, que é um mecanismo de defesa do corpo destinado a evitar a entrada no sistema nervoso central de vírus ou de toxinas. Mas a cafeína atravessa esta barreira com muita facilidade. Ao fim de cerca de uma hora, atingiu o máximo da sua concentração no cérebro, e, uma vez aqui instalada, faz um grande número de coisas - acima de tudo, bloqueia a acção da adenosina, o neuromodulador que nos faz sentir-nos ensonados, que faz descer a nossa tensão arterial, e que modera os nossos batimentos cardíacos. Depois, tão depressa como se acumulou no cérebro e nos tecidos, a cafeína desaparece - e é por isso que é uma droga tão segura. Nunca se demonstrou conclusivamente que nenhuma doença série esteja ligada ao consumo de cafeína. Com estes poderes mágicos, a cafeína teve a capacidade de infiltrar todos os aspectos da nossa vida, influenciando directamente a nossa cultura. Mais ainda, conseguiu criar novas culturas. O melhor exemplo será certamente a reputação do café como a «bebida dos pensadores». Esta conotação data da Europa do século XVIII, onde os cafés desempenharam um papel de primeira linha no espírito igualitário e integracionista que tinha então começado a varrer o continente. Estes cafés espalharam-se primeiro por Londres, alarmando de tal maneira o rei Carlos II que tentou bani-los. Em vão. Por volta de 1700, já existiam centenas de cafés em Londres, inundando a cidade de um novo espírito subversivo. A seguir o movimento alastrou até Paris, onde, no fim do século XVIII, os cafés se contavam às centenas - incluindo os famosos Café de la Régence e o seu vizinho Café Royal, que contavam entre os seus clientes Robespierre, Napoleão, Voltaire,Victor Hugo, Théophile Gautier, Rousseau, e o duque de Richelieu. Anteriormente, quando os homens se juntavam para falar em lugares públicos, faziam-no em bares, que serviam nichos sócio-económicos específicos e que, devido ao álcool que serviam, criavam uma forma de discurso específica. Os novos cafés, pelo contrário, atraíam muitas classes e profissões diferentes, e funcionavam como estimulantes, e não como depressantes. Daqui resultou muito provavelmente um grande estímulo para a arte da conversa se tornar uma fonte de inspiração literária, e para o despontar de uma nova geração das letras. Note-se, de caminho, que nos cafés originais toda a gente fumava, e que a nicotina também tem o seu efeito fisiológico preciso. Modera otemperamento, e expande a atenção. E, ainda mais importante, duplica a taxa de metabolização da cafeína. Ou seja, permite-nos beber duas vezes mais café do que o que beberíamos sem fumar Por outras palavras, o café original era um sítio onde homens de todas as espécies podiam sentar-se o dia inteiro; o tabaco que fumavam permitia-lhes tomar café todo o dia; e o café que bebiam permitia-lhes falar e pensar todo o dia. Foi desta conjugação espantosa de droga e de lugar que nasceu o Iluminismo. Depois o café expandiu-se destes santuários precisos para a casa de cada um, quando o café do Brasil começou a inundar o Ocidente a partir de 1820. Este dilúvio de cafeína deve ter sido instrumental no desencadear da Revolução Industrial: foi o café que permitiu que números impressionantes de pessoas passassem a poder coordenar os seus horários de trabalho por forma a estarem despertos e cheios de energia à hora marcada para iniciarem os seus turnos laborais, e para depois os continuarem enquanto fosse preciso. Não devemos esquecer que, até ao século XVIII, a maioria dos ocidentais bebia cerveja quase continuamente, e era com sopas de cavalo cansado que as pessoas começavam o dia. Cito apenas, a título de exemplo, uma receita de pequeno-almoço vinda da Alemanha:«Aquecer a cerveja num pote. Numa tigela separada bater dois ovos. Juntar um bocado de manteiga à cerveja quente. Juntar alguma cerveja fria e mexer bem para arrefecer, e depois juntar os ovos. Juntar uma pitada de sal, e bater bem para não talhar.»A partir do século XVIII, estas receitas foram substituídas por uma boa almoçadeira cheia de café. De certa forma, podemos explicar a Revolução Industrial enquanto consequência inevitável da transição súbita de um mundo onde de repente as pessoas, ao acordar preferiam estar alerta a estar embriagadas. Até esta altura, o trabalho intelectual tinha estado sempre associadoao lazer Esta tradição persistiu pelo menos desde que Arquimedes descobriu o princípio da alavanca enquanto estava a tomar banho. Como café, o génio intelectual passou a ser antes definido por aquela frase famosa que tanto é atribuída a Edison como a Einstein, e que provavelmente é mesmo apócrifa, «um por cento de inspiração e noventa e nove por cento de transpiração». No mundo industrializado, o trabalho da mente passou a ser tão árduo como o trabalho manual. Durante o século XX, as profissões também se alteraram em consequência, como fica bem exemplificado na medicina, que aproveitou o café para introduzir na cena os ordálios sucessivos das 24 horas de banco. O heroísmo intelectual passou a ser uma questão de resistência. Outro bom exemplo: a vida do físico Richard Feynman, tal como descrita na biografia «Genius» de James Gleick. «O dia de Feynmman começava às 8.30 e acabava quinze horas depois. Por vezes ele não podia sair do centro de computadores de todo. Uma vez trabalhou 31 horas de seguida, e no dia seguinte descobriu que um erro cometido poucos minutos depois de se ter ido deitar tinha empatado a equipa inteira. A rotina não permitia mais que umas escassas e curtas pausas.» Agora, estas performances sobre-humanas de Feynman revelam um talento natural maior que o de qualquer um dos seus predecessores? Ou será simplesmente devido ao facto de Feynman poder beber muito mais café? No livro The Man who Loved Only Numbers, Paul Hoffman descreve o lendário matemático Paul Erdos que «trabalhava turnos de dezanove horas, mantendo-se fortificado com de 10 a 20 mg de benzedrina ou ritalina, bicas curtas, e comprimidos de cafeína, defendendo com carinho e insistência que um matemático é uma máquina de converter café em teoremas». Uma vez, um amigo apostou quinhentos dólares com Erdos que ele não conseguiria passar um mês sem anfetaminas. Erdos aceitou a aposta e ganhou. Mas, durante o seu período de abstinência, sentiu-se incapaz de fazer qualquer trabalho sério. «Fizeste a matemática retroceder um mês», disse ele ao amigo quando recebeu os quinhentos dólares. Erdos conhecia muito melhor a sua consciência alterada do que a sua consciência natural, e este tipo de síndroma pode aplicar-se mais ou menos a toda a sociedade em geral. Uma parte do que significa ser humano na idade moderna implica que temos que construir os nossos estados mentais e cognitivos não apenas de dentro para fora, com pensamentos e intenções, mas também de fora para dentro, com aditivos químicos. Neste sentido, personalidade moderna é uma criação sintética: é cuidadosamente regulada, e modulada, e doseada, com cafeína, para que possamos estar sempre acordados e alerta, e concentrados no nosso foco preciso de cada momento. Quase de certeza que qualquer um de nós, para ganhar uma aposta, conseguiria estar um mês sem ingerir cafeína. Mas o que é que adiantaríamos com isso? Os advogados não conseguiriam exercer durante todas as suas horas de expediente. Os jovens médicos demorariam muito mais tempo a treinar-se. Os físicos, provavelmente, ainda estavam a tentar inventar a bomba atómica no deserto do Novo México. O mundo inteiro andaria um mês para trás. Claro que é um bocado inquietante pensarmos assim, a frio, que a personalidade moderna é de característica sintética. Quando pensamos em construir novas identidades a partir de meios químicos, pensamos nas drogas duras, e não na cafeína. Timothy Leary costumava usar omesmo tipo de discurso a propósito do LSD, e provavelmente a razão pela qual a sua revolução nunca chegou a ir a lado nenhum foi a maioria dos mortais ter achado aquela ideia do «tune in, turn on, drop out» um bocado desagradável. Ora aqui estava um verdadeiro shaman, um verdadeiro visionário - e no entanto, se a sua consciência era assim tão fabulosa, por que é que o homem parecia tão determinado a alterá-la? E, mais importante ainda, o que é que se esperava que agente encontrasse quando fizesse o tal «tune in»? Davam-nos algumas pistas, como cores psicadélicas e leituras profundas do «Lucy in the Sky with Diamonds», mas há que admitir que isto era um bocado vago. Se era suposto a gente recriar-se, era bom que nos dissessem em que é que íamos transformar-nos. A cafeína é a droga que funciona melhor e se mostra mais útil para responder exactamente a esta pergunta, em qualquer uma das formas em que se nos ofereça. É um estimulante que bloqueia a acção da adenosina, e aparece numa grande variedade de formas, cada uma delas com a sua lenda precisa associada, uma História feita de fragmentos históricos e imaginários recentes, que transforma cada acto diário de bloquear a adenosina numa declaração de intenções com sentido e propósito. Ponham a cafeína dentro de uma lata encarnada, e é um divertimento refrescante. Ponham-na a abrir lentamente dentro de um bule de chá, e é um convite ao romance e ao decoro. Extraiam-na directamente de uns grãos escuros, e é uma fonte mágica de potência e energia. E fixem bem esta passagem, do livro «The World of Caffeine», de Bealer e Weinberg:«Havia um emigrantezinho russo, Trotsky de seu nome, que durante a Primeira Guerra Mundial tinha o hábito de ir jogar xadrez todas as noites para o Café Central de Viena. Era um refugiado russo típico, que falava demais mas parecia absolutamente inofensivo, até certo ponto uma figura patética aos olhos dos vienenses. Um dia em 1917 um oficial do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Áustria entrou a correr no gabinete do ministro, arfante e excitado, e disse ao seuchefe: "Excelência... Excelência... A Revolução rebentou na Rússia! "O ministro, menos excitado e menos crédulo que o seu subordinado, rejeitou esta pretensão tão disparatada e respondeu calmamente: "Vá-se embora... A Rússia não é um sítio onde rebentem revoluções. Aliás, pelo amor de Deus, quem é que seria capaz de fazer uma revolução naRússia? O Herr Trotsky, do Café Central?»Há coisas que às vezes os ministros não sabem. Por exemplo, que, se derem a um homem suficiente cafeína, ele é capaz de tudo."


Prof Frederico Guilherme de Castro in «Conscioustiess: Biology of Mystery?», Camberra University Press, Camberra, Austrália, in prep