quinta-feira, março 06, 2008

With Borges

Aos 16 anos Alberto Manguel trabalhava numa livraria de Buenos Aires, quando um escritor cego, Jorge Luís Borges, lhe propôs um emprego em part-time como leitor em voz alta. Mais tarde o jovem Manguel tornou-se um aclamado escritor e relatou este encontro, que durou vários anos, em With Borges.
Gostei especialmente das seguintes palavras que subscrevo...
"But to me, those evenings with Borges were (in the arrogance of my adolescence) not really something extraordinary, something not alien to the world of book which I always assumed was mine. If anything, it was most other conversations that seemed to me alien, uninteresting - conversations with my teachers about chemistry and geography of the South Atlantic, with my school mates about soccer, with my relatives about my exam results and my health, with neighbours about other neighbours. Instead my conversations with Borges were what, in my mind, conversations should always be: about books, and about the discovery of writers I had not read before, and about ideas that had not occurred to me, or which I had glimpsed only in a hesitant, half-intuited way that, in Borge's voice, glittered and dazzled in all their rich and somehow obvious splendour."

sábado, março 01, 2008

António

O calor e a ansiedade encharcavam a face de António. Os fios que tombavam da sua testa aliavam-se ao cansaço que lhe pesava as pestanas. O suor escorregava, em gotas, pela cana do nariz, para se acamar nas covas do seu lábio superior. Acumulava-se a água, como um bigode, por cima da boca até ser sacudida por um safanão violento vindo do volante. Outros fios escorriam-lhe nas costas provocando arrepios embaraçosos que o deslocavam no banco. Habituara-se ao suor desde que começara a tomar peso, ainda antes de partir para África, mas, aquela viagem apressada, estava a transformá-lo num pano encharcado. Uma mosca enamora-se do seu ouvido esquerdo em tangentes sonoras incómodas que procurava interromper com o esgar do pescoço na direcção da janela. As mãos melosas tentavam alcançar a alavanca para abrir o vidro, permitindo expulsar a mosca e repor alguma justiça na sua temperatura corporal.
Há mais de cem quilómetros que não falava, os pensamentos ocupavam-lhe a mente, não deixando espaço para o discurso. Ao seu lado, Júlio não se atrevia a quebrar o silêncio. Noutras circunstâncias talvez o fizesse mas, desta vez, limitava-se a refrescar-se com água e a desejar que a noite anterior nunca tivesse acontecido. Preparava, há algum tempo, uma interjeição que resolvesse aquele desconforto que se adensava mas, desistia sempre no último momento. Descrevia gestos tensos, ora arrastando as mãos sujas pelas coxas, ora coçando violentamente as patilhas até que se enchessem os ombros de caspa fina. Júlio nunca fora um tipo violento, nem mesmo com os pretos em África, a quem raramente levantava a mão, mas o álcool e uma zaragata foram suficientes para o levar à vertigem que o condenou.
Aproximava-se a fronteira, forçando a paragem para que Júlio se escondesse na bagageira do Volvo. Escondeu-se por baixo de umas mantas e de uns sacos de viagem que serviriam para o disfarce, pediu mais uma vez desculpa como um cão arrependido e envolveu-se quieto. António tornou ao volante, apesar de ter ponderado abandonar o carro naquele momento. Recordou, nesta altura, a fronteira da Namíbia, que passou vezes sem conta em direcção à Africa do Sul, o calor e a poeira davam particular credibilidade a esta recordação.
Chegado à fronteira, António parqueou o carro e meteu conversa com o fiscal que se preparava para vistoriar o carro. Abriu a bagageira, onde se distinguia um pé de Júlio enroscado por baixo dos sacos. Um choque de pânico percorreu António, que se viu perdido naquele momento. Puxou as calças para cima, num gesto nervoso que muitas vezes repetia, e retomou um ar calmo. Julgando ser o pé de um morto e temendo o pior também para si, o fiscal disse a António que seguisse.
Seguiram para Tui onde ficou Júlio, em lágrimas, com algum dinheiro para a fuga. Uma semana mais tarde, ainda com dinheiro no bolso, voltou a Portugal e entregou-se à guarda.
Desenho - Andreia Dias