sábado, dezembro 29, 2007

Helena

Perguntou-me desdenhoso se sempre jantávamos naquele dia. Atrasei o jantar propositadamente, dava-me certo prazer vê-lo roer-se de fome enquanto rondava a cozinha impaciente, afinal, este era um acto de tortura a que julgava ter direito após anos de solidão acompanhada. Cozinhei com especial esmero naquele dia, pensei cuidadosamente no seu prato preferido, e bacalhau era o prato certo para uma ocasião tão solene. Demolhei-o durante três dias, trocando-lhe a água no final do primeiro, escolhi a mais rendilhada travessa assadeira que me tinham dado como prenda nesse ano, reguei abundantemente as mais altas postas com o mais puro azeite depois de as ter colocado sobre finas rodelas de cebola e tomate. Rodeei as postas de salsa e louro, ervas que permitem um gosto que ele muito apreciava, cozi pequenas batatas durante a tarde que coloquei na assadeira para que alourassem, levei tudo ao forno e esperei. Durante o tempo de espera desfiz duas mangas com leite condensado e gelatina seguindo a receita de mousse de manga da minha mãe. Pus a mesa com o nosso serviço e, no centro, coloquei um imponente arranjo floral que comprei nessa manhã no mercado da fruta.
Detive-me alguns momentos a observá-lo enquanto inalava à força as últimas nuvens de fumo do seu cachimbo asqueroso, dirigi-me à cozinha e esfarelei 20 dos meus comprimidos para dormir com a ajuda do coto da faca de desmancho. Juntei-os ao jarro de vinho, não bebi vinho naquela noite, não o fazia regularmente pelo que não levantei suspeitas. Comeu alarvemente com aquela forma de sorver os alimentos que me enoja, bebeu também todo o jarro de vinho. No final da refeição sentia-se cansado e foi deitar-se. Vesti o casaco, bati a porta e nunca mais voltei.
António ouviu pacientemente o relato de Helena, engasgando-se com o salivar excessivo a que não estava habituado nestas inquirições. Todo aquele discurso o inquietou, e nem a sua vasta experiência como inspector impediu a sua surpresa, principalmente tendo em conta que o corpo que estava nesse momento na cave do edifício tinha doze facadas no peito.
Nesse dia, António comprou flores que levou para casa, e deitou no caixote do lixo o cachimbo que usava desde os tempos da tropa.

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