domingo, dezembro 30, 2007

Fernando

Fernando apaixonara-se recentemente por um livro, era algo que lhe acontecia recorrentemente. Como era hábito, durante estes amores correspondidos, insistia em reconhecer as personagens que o enamoravam nos seus vizinhos. Ontem tinha encontrado Richard, o poeta, no vizinho do terceiro andar, de quem a doença parecia também estar a tomar conta. E, recentemente, encontrara Laura Brown em Helena do bloco B. Encontrou em Helena a infelicidade disfarçada de Laura e adivinhou que estivesse naquele momento a ler Mrs. Dalloway deitada na cama de um Hotel, preparada para acabar com tudo.
Adorava viajar, prazer que lhe havia sido furtado pelo nascimento do primeiro filho, contentava-se agora com pequenos passeios solitários ao Domingo de manhã, pela fresca, para que se não atrasasse para o almoço familiar. Saiu cedo para desfrutar da cadência cardíaca do mar de Vila do Conde ao desfazer-se nas rochas. O mar estava agitado e formava finos carneiros no areal, o compasso ritmado das ondas, perto do castelo, convidava ao mergulho no abismo a que, por certo, Virgínia não resistiria em um dos seus dias maus. Queria cansar as pernas naquele dia, ia em busca de Clarrisa, Sally e Louis por entre os veraneantes tardios de Outubro. Os vendedores desfraldavam os toldes baptizando quem passava com as águas acumuladas da geada, procurava uma florista onde pudesse esperar Clarissa antes da festa. Avistou-a ao longe, os cabelo claros, a pele luminosa de saúde e a cesta de vime para compras permitiram a sua identificação imediata. Imaginava-a já a sair da florista com uma braçada de flores e com o chapéu a cair-lhe tocado pela brisa. Passou pela florista sem entrar, talvez estivesse atrasada para encontrar Richard.
Regressou para o almoço, causava-lhe fastio aquela reunião familiar, onde pontificavam os parentescos figurões e faisões herdados de sua mulher. Por certo encontraria Rodrigo, cantor de câmara, que não se fazia rogado em contar a opulência da sua vida de artista, que contrastava com o cinzento da sua face. Cruzou-se com Helena ao chegar a casa, deslizava apressadamente nos paralelos da rua, esquivando-se aos carros mal estacionados, vinha lívida do beijo roubado a Kitty na sua cozinha.
Sentou-se, desejando falar e comer pouco, não pretendia fazer durar aquele período de sofrimento. Por momentos viu entrar na sala uma moça de seios trementes, esmagando o soalho, ostentando uma travessa fumegante e imaginou-se em Tormes preparado para partilhar com Jacinto um arroz de favas. A sua boca aguada secou-se ao ver outro conteúdo na travessa e por terem sumido os seios fartos à moça servente.

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