sábado, dezembro 06, 2008

Eveline

Julguei-te mais bruto nessa altura. Eram insuspeitas, para mim, tuas delicadezas e eloquências encarceradas pela barba e pelos óculos toscos. Este costume de reparar nos trajes e nas feições herdei-o de minha mãe que, mesmo no leito da morte, me chamava a atenção para o desleixo do médico ao não barbear-se ou ao não abotoar totalmente a camisa. Foquei-me nas tuas vestes ligeiramente rotas e não nas tuas mãos cuidadas, reparei na vermelhidão que te rodeava os olhos e não nos teus dentes perfeitamente alinhados. Além disso, parecias-me uma personagem algo misógina pela forma como me evitavas com o teu olhar, impressão que trataste, mais tarde, de contraditar com particular vigor.
Abordaste o meu pai, invulgarmente sóbrio para uma tarde fria e escura como aquela. Entendo a embriaguez dos homens com naturalidade, uma consequência do frio a que as mulheres são imunes. São imunes a tudo as mulheres, resistentes a todos os jugos. Querias vender-lhe umas hortaliças que se espalhavam pela banca, sobejos do labor da manhã. Era melhor que fossem garrafas de Rum ou Whiskys com Soda para que lhe conseguisses aguçar a vigília. Comprei-tas eu num súbito acesso de pena.
No dia seguinte tornei ao mercado, numa tarde ainda mais escura. Aqui cada tarde é mais escura do que a anterior, ás vezes mais escura do que a própria noite, que tem tons azulados que escapam à tarde de cinza. Tornei a comprar-te as verduras, os sobejos, num ritual que se multiplicou dias sem conta, como se multiplicaram a hostilidade do meu Pai e as ausências dos meus irmãos que criei com minhas mãos. Raramente me voltou a acompanhar. Totalmente caído passava-me para as mãos, à mistura com alguns empurrões, um punhado de dinheiros acusando-me sempre de os desbaratar. Outras vezes acompanhavam-me Harry ou Ernest, quando estavam na cidade, a sua companhia desconfortava-me porque era raro beberem tendo por isso os sentidos mais despertos.
Enquanto sinto o bafo poeirento de cada cortina e de cada toalha, revejo essas tardes em que te conheci, revejo também as outras em que me esperaste depois do emprego, contabilizo-as contra as promessas feitas a minha mãe e contra o desamparo a que votarei o meu pai depois da minha partida. Sonho com uma vida longínqua contigo. O meu nome é Eveline e, desde que o receio não me ate as mãos às grades do porto, será desta que escaparei de Dublin.

Nenhum comentário: